«Portalegre, 6 de maio de 1978. Estrela e União de Tomar jogam a 25.ª jornada da Zona Centro da 2.ª Divisão, cumprindo calendário a cinco jogos do fim, tal a distância para o líder Beira-Mar. Os nabantinos entram em campo embalados pela lenda, mas saem vergados ao peso de uma derrota e deixam-se apanhar pelos alentejanos na tabela.
Muito mais que o resultado, é uma despedida que eleva este duelo à história do futebol português. Eusébio da Silva Ferreira diz ali adeus aos relvados portugueses, alinhando pela última vez num jogo oficial do futebol lusitano. Há 40 anos. Record evoca o derradeiro desafio do Pantera Negra, então em trânsito para os Estados Unidos, onde haveria de colocar ponto final numa carreira tão gloriosa quanto assombrosa, fantástica, inesquecível.
Quando Eusébio chegou às margens do Nabão, naquela memorável noite de quinta-feira de meados de novembro de 1977 e com o treino do União em andamento, já carregava nas pernas (e nos joelhos…) o peso dos seus 36 anos.
É pela mão do mítico António Simões que a lenda chega à cidade dos Templários. O seu ‘irmão branco’, companheiro de gloriosas conquistas pelo Benfica, chegara meses antes para ali manter a forma enquanto descansavam os faustosos campeonatos norte-americanos, sendo precisamente esse o motivo que leva Eusébio a vestir a rubro-negra do União de Tomar.
O acordo é selado em Lisboa, no escritório do advogado que assistia Eusébio, sob condição sine qua non: “Atenção sr. presidente, quem me passa os cheques é o senhor e os cheques têm de ser seus”, exigiu o craque a Fernando Mendes, então líder do clube, de uma sociedade filarmónica e dono de uma… funerária. Escaldado por outras aventuras, temia nunca chegar a receber se o União falisse, entretanto… “Ele ficou a ganhar à volta de 60 contos mensais. Passei os cheques para cada mês, que foram respeitados e pagos integralmente por mim”, contou um dia Fernando Mendes, falecido no final de 2016.
Só fez 12 jogos pelo clube, meteu apenas 3 golos, mas marcou para todo o sempre a história do União Futebol Comércio e Indústria de Tomar. O treinador que tremia só de lhe falar, os almoços ‘cravados’ aos guarda-redes, o dia em que tirou um colega do onze em cima da hora, os desfiles num inesquecível SAAB amarelo, e muitas outras histórias para recordar, quatro décadas depois da última cruzada do rei no futebol português, por terras dos Cavaleiros Templários.
O treinador aflito e o guarda-redes ‘acagaçado’
A chegada de Eusébio a Tomar causou sensação. Pudera, tratava-se tão-somente de um dos melhores jogadores de sempre, sendo pouquíssimos os que com ele ousavam rivalizar. À época, só Pelé merecia igual epíteto. Se Deus era brasileiro, o rei era português de Maputo. E chegou à margem do Nabão numa inolvidável quinta-feira de meados de novembro de 1977. Tinha 35 anos.
A primeira vez foi inesquecível… para quem o idolatrava, como Barrinha e Caetano, “encantados com a chegada do ídolo”. Se o fascínio de dois miúdos de 22 e 24 anos era compreensível, não deixa de ser admirável o jeito com que o treinador lidou com o momento. “Enquanto o Eusébio chegava e não chegava, o sr. Vieirinha, deambulava à porta do estádio, de cigarro e boquilha na boca, impaciente…”, conta-nos Barrinha. “Passados largos minutos e já em pleno treino, entra aos gritos: ‘Chegou o Rei! Chegou o Rei! Parem o treino que chegou o Rei!’ E nós ali a olhar uns para outros, sem saber o que fazer… O Eusébio entrou com o Simões, foi-nos apresentado, foi equipar-se e ainda treinou nesse dia”. Assim era a aura de Eusébio da Silva Ferreira, absolutamente desconcertante.
“Só treinava à quinta-feira”, recorda Caetano, “embora tivesse quarto à disposição no Hotel dos Templários”, outro símbolo da cidade. Se o acordo selado com o presidente garantia autonomia ao Rei, o estatuto granjeado deixava o seu treinador em pânico. João Bravo, avançado do União e do Boavista formado no Benfica, garantiu um dia ter apanhado “Eusébio a dormir numa palestra”. Barrinha não vai tão longe, mas confirma a aflição do treinador. “Ele ficava nervoso porque não sabia o que devia dizer ao Eusébio. ‘O que é que eu lhe posso ensinar?! Nada! É o Rei!’, dizia o sr. Vieirinha”, conta, em registo animado.
Os registos são dispares, quase inconclusivos, mas a contas de Record são simples: 12 jogos com 3 golos. O último, em Portalegre, derrotado pelo Estrela, sem honra nem glória, contrariando a monstruosidade dos seus números pessoais, confirmando a tendência decadente da carreira. Se o flagelo que impôs aos joelhos lhe toldava os movimentos, compensava com a força do seu pé-canhão. “Fez dois golos aqui ao Cartaxo e o primeiro tem piada: quem batia os livres eram o Florival e eu. Só que eu dei logo a bola ao Eusébio… Sabem por onde é que ela entrou? Bem… acho que o guarda-redes ficou de tal maneira ‘acagaçado’ que nem se mexeu! Ele até deve ter feito pontaria à cabeça dele porque a bola passou-lhe rente e entrou ao meio da baliza”, para gáudio da multidão que esgotava o estádio tomarense “e enchia todos os campos onde o União jogava nessa altura”, remata Caetano. Reclamar a 10 e entrar no 11… de táxi
Não era só na hora da palestra que o sr. Vieirinha tremia perante a pressão de treinar a lenda. “Um dia fomos jogar ao União de Coimbra, mas o Eusébio não apareceu na concentração em Tomar. Bom, lá fomos…”, recorda Henrique Caetano. “Já estávamos a aquecer, quando o nosso massagista entrou no campo para chamar o Bravo. ‘Dá cá a camisola que chegou o Rei’, gritou ele. Eusébio chegara, entretanto… de táxi, ‘reclamando’ a titularidade que se impunha, assim como os direitos históricos sobre a camisola 10. “Lá tiveram de ir emendar a ficha do árbitro e quem pagou as favas foi o Bravo pois teve de ir para o banco”, lembra Caetano, numa gargalhada estridente.
Desculpe as porradas e obrigado pelo almoço
A presença de Eusébio “provocava autênticas romarias aos jogos do União”, lembra Caetano. E se ambiente era frenético nas bancadas ou em redor dos varões que cercavam os campos da época, lá dentro era… peculiar, no mínimo. “Havia jogadores que se queriam mostrar e então faziam frente ao Rei… dando-lhe porrada”, sorri Barrinha, recordando “outros que logo pediam desculpa ao senhor Eusébio”. Já Marito e Segorbe, guarda-redes do União em 1977/78, têm muito que contar ou não tivessem ficado a arder das mãos… e dos bolsos. “Ele fazia apostas e ganhava refeições à conta deles”, sorri Caetano. “Metia a bola na meia lua e dizia que pagava o almoço a quem defendesse. Disparava com cada pontapé… Até lhes dizia para onde ia a bola e nem tomava balanço. ‘Tau!’ Não tinham qualquer hipótese, mesmo assim…”
“Bola no pé”… se conseguirem
Record desafiou Barrinha e Caetano nesta viagem ao baú das recordações. “Não é fácil, já lá vão 40 anos”, lembram, concordando que Eusébio é inolvidável. “Já não se mexia tanto, mas com a bola no pé, ui, ui. Tinha de ser mesmo no pé. Se fosse mais ao lado, já ralhava. Que havíamos de fazer? ‘Oh Eusébio, a gente bem tenta’, mas…”, revive Barrinha. “Tinha de ser no pé, mas ainda se mexia um bocadinho, ao contrário do Vítor Baptista! Com esse figurão é que tinha de ser mesmo no pezinho”, conta Caetano, bem-disposto, evocando a passagem de outra lenda pelo União. Nos tiros de longe, igual sina. “Ele gostava de nos ensinar a bater livres e explicava que o fazia com os três dedos da parte de fora do pé. Bem tentávamos, mas nem uma acertávamos!”, confessa Barrinha. O fascínio salta à vista. “Eu e o Caetano íamos mais cedo para o treino só para o observar. Ficávamos no balneário a olhar para o nosso ídolo de sempre, a ver como se equipava, os pormenores. Ele tinha um dos joelhos completamente deformado e apanhou-me especado a mirar. ‘Estás a olhar? Este aqui já vai com sete operações’. Realmente era impressionante”, relembra Barrinha.
Champanhe da noiva e marisco à conta
Se a presença nos relvados atraía multidões, a entrada em restaurantes agitava a população e fazia mossa… nos casamentos. “Uma vez ficou cá para jantar connosco no Godinho, um restaurante ali no Carvalhal Pequeno, conhecido pelas boas carnes e belo bacalhau. Aquilo encheu logo de miúdos para verem o Eusébio! Nem o próprio dono acreditava! ‘Não pode ser… O Eusébio em minha casa!’. Até foi buscar uma garrafa do melhor champanhe que ali tinha guardada para o casamento da sua filha”, sorri Barrinha, enquanto Caetano lhe recorda “os jantares na Marisqueira de Tomar à conta do Rei” Eusébio. “Estava lá o Paulo, um rapaz de Moçambique, que mandava recado e nós lá íamos com ele beber umas imperiaizinhas e comer camarão do bom.”
Barrinha e a braçadeira do sr. Simões
António Joaquim Marques Barrinha nasceu em Alcochete há 62 anos. Formado no Belenenses, chegou a Tomar aos 18 anos, meses depois da revolução de 1974 selada em pleno dia do seu aniversário. Ia para a quarta época no clube quando Eusébio chegou, precedido de António Simões. Acabara de herdar a braçadeira de capitão, apanhado desprevenido por Faustino Luís Moisão Chora, falecido em 2017 e de quem se diz ter sido o maior símbolo da mística unionista. “Deram-me a braçadeira porque tinha havido zangas e o Faustino já não queria ser capitão. Como aqui o Caetano estava de volta depois de ter jogado na União de Leiria, era eu quem tinha mais anos de balneário”, sustenta, contando por que abdicou do cargo. “Quando o sr. António Simões chegou, fui dar-lhe a braçadeira. Ele ficou bastante sensibilizado e colocou-me à vontade para continuar. Era o que faltava! Então ele era o capitão da Seleção Nacional e não havia de ser aqui do União?!”, explica este antigo médio que também passou por Juventude de Évora, Vitória de Guimarães, União de Leiria e Vitória de Setúbal.
Caetano: o ‘argentino’ com pêlo na venta
Henrique Manuel Pereira Caetano nasceu em Tomar há 64 anos e fez grande parte da carreira no União, passando por União de Leiria, Académica e Ginásio de Alcobaça. “Eu tinha a mania que era reguila e o Eusébio achava piada quando eu me pegava com alguém. Chamava-me ‘argentino’ por causa dessas confusões”, conta, com brilho nos olhos, revelando o dia em que o Rei lhe roubou o prazer de ganhar em plena Luz. “Tinha 18 anos quando lá fui jogar pela primeira vez. Era o Benfica de Eusébio, Simões, Nené, com o Zé Gato na baliza. Estivemos a ganhar até um quarto de hora do fim e eles com menos um porque o Artur Correia, o Ruço, tinha ido para a rua… Já perto do fim, livre à entrada da área: tiraço do Eusébio e 1-1. Mesmo a acabar, outro livre: ele mete a bola no sítio, começa no estilo dele a fazer que ia rematar com força e os nossos na barreira a medo… Pumba, bola em jeito e 2-1 para eles…”
Às escuras no Tramagal
“Certa noite fomos fazer treino de conjunto ao Tramagal e quando lá chegámos a luz estava desligada. Saímos do autocarro às escuras e sentimos o campo cheio de gente! Tudo à espera do Rei”, conta Caetano.
Real malandrice
“Fomos jogar a Marrazes, campo pelado onde o Eusébio parecia um menino a fazer cortes em carrinho. Num livre, contra o vento, o malandro tirou ar à bola com um pauzinho! Mas nem assim meteu golo”, contou um dia Faustino.
O irmão Juju e o Saab amarelo
“Antes de vir para o União, já o Eusébio era visto em Tomar. Vinha visitar o irmão Gilberto, o Juju, que estudava no Colégio Nun’Álvares. Vinha num vistoso SAAB amarelo, digno de ser visto”, recorda-nos Fernando Hilário, glória da forcadagem portuguesa e internacional.
Sem complexos nem manias
Jogar na 2.ª Divisão nunca foi problema. “Isso que importa? Pormenor sem importância. Tive convites da 1.ª e preferi vir para Tomar. Tenho honra e orgulho em vestir a camisola do União. Não sou mais nem menos que os outros”, avisou Eusébio, a Record, em 1977.»
(Record, 09.05.2018 – Autor: António Adão Farias)